Apesar de Pio XII ter declarado que uns ossos encontrados debaixo do altar da Basílica de São Pedro pertenciam ao apóstolo, e mais tarde, a 26 de junho de 1968, Paulo VI ter anunciado que o túmulo de Pedro tinha sido identificado, tal identificação não é segura. O seu sítio tradicional é na colina vaticana, onde em 330 Constantino mandou construir uma basílica depois de um complexo nivelamento do terreno, e hoje assenta a basílica de São Pedro cuja construção se iniciou em 1503. A suposta sepultura de São Pedro encontra-se debaixo do altar.
Independentemente da certeza que possa haver acerca do sepulcro do Apóstolo Pedro, o propósito desta nota é comentar dois assuntos estreitamente relacionados mas certamente diferentes, a saber: a evidência de que o Apóstolo Pedro tenha ensinado e morrido em Roma, e a evidência de que tenha sido o fundador e primeiro bispo da Igreja de tal cidade.
I. A evidência de que Pedro morreu em Roma
Acerca do primeiro, ou seja, da morte de Pedro em Roma, o autor católico romano J.P. Kirsch diz:
Citação:
O autor sustenta que a morte de Pedro em Roma é um facto histórico indisputável. Na realidade trata-se de um facto muito provável; "indisputável" é uma palavra muito forte. Por outro lado, o autor do artigo sobre o túmulo de Pedro na mesma obra inicia o seu opúsculo com as seguintes confissões: "A história das relíquias dos Apóstolos Pedro e Paulo está envolta em considerável dificuldade e confusão. As autoridades primárias a ser consultadas estão em oposição umas com as outras, ou pelo menos o parecem estar." (Arthur S. Barnes, s.v. Tomb of St. Peter). A seguir apresento um resumo da evidência apresentada por Kirsch, com os meus comentários entre colchetes:
Citação:
É um facto histórico indisputavelmente estabelecido que São Pedro trabalhou em Roma durante a última parte da sua vida, e aí concluiu a sua carreira terrenal com o martírio. Em relação à duração da sua atividade apostólica na capital romana, à continuidade ou não da sua residência aí, aos detalhes e ao êxito dos seus trabalhos, e à cronologia da sua chegada e morte, todas estas questões são incertas, e podem ser resolvidas somente com base em hipóteses mais ou menos bem fundamentadas. O facto essencial é que Pedro morreu em Roma: isto constitui o fundamento histórico para que os bispos de Roma reclamem a Primazia Apostólica de Pedro.
A residência e morte de São Pedro em Roma está estabelecido indiscutivelmente como factos históricos por uma série de diferentes testemunhos que se estendem desde o final do primeiro século até ao final do segundo, e que provêm de diferentes regiões."
(s.v. Peter, Saint. Em The Catholic Encyclopedia, vol. 11, 1911; negrito acrescentado). |
O autor sustenta que a morte de Pedro em Roma é um facto histórico indisputável. Na realidade trata-se de um facto muito provável; "indisputável" é uma palavra muito forte. Por outro lado, o autor do artigo sobre o túmulo de Pedro na mesma obra inicia o seu opúsculo com as seguintes confissões: "A história das relíquias dos Apóstolos Pedro e Paulo está envolta em considerável dificuldade e confusão. As autoridades primárias a ser consultadas estão em oposição umas com as outras, ou pelo menos o parecem estar." (Arthur S. Barnes, s.v. Tomb of St. Peter). A seguir apresento um resumo da evidência apresentada por Kirsch, com os meus comentários entre colchetes:
1. A alusão ao martírio de Pedro em João 21:18-19 parece pressupor que os leitores do Evangelho conheciam o facto.
[Fernando Saraví: Sim, mas não diz nada acerca do lugar onde ocorreu; portanto, tal alusão não apoia a tese defendida].
2. A saudação em 1 Pedro 5:13, "A [igreja] que está em Babilónia, eleita juntamente convosco, e [também] meu filho Marcos, vos saúdam", parece uma alusão a Roma (comparado com Apocalipse 17:5; 18:10). A antiga Babilónia estava então em ruínas.
[Fernando Saraví: Embora Babilónia não existisse como império, a região estava habitada; não é impossível – embora possa discutir-se quão provável - que Pedro escrevesse a partir daí. A tese romana baseia-se na identificação de Babilónia com Roma com base na referência ao Apocalipse, o que é obviamente uma conjetura. Além disso, o facto de que Pedro se encontrasse em Roma por volta de 64 não demonstraria que foi o primeiro bispo da Igreja ali].
3. Segundo o testemunho de Papias, bispo de Hierápolis na Ásia Menor, Marcos teria escrito o seu Evangelho em Roma a partir dos ensinamentos de Pedro. Clemente de Alexandria disse, baseado numa tradição, que depois que Pedro anunciou o Evangelho em Roma, os cristãos dali rogaram a Marcos que pusesse por escrito o que os Apóstolos lhes haviam pregado (Ireneu, Adv. Haer. 3:1; Eusébio, Hist. Eccl. 2,15; 3,40; 4:14; 6,14).
[Fernando Saraví: O testemunho de Papias é pouco confiável em muitos aspectos que se conhecem melhor, e portanto pouco digno de crédito. Por exemplo, diz umas coisas muito pitorescas sobre o milénio e a morte de Judas. Além disso, em ambos os testemunhos, chamativamente se trata de bispos que viviam longe de Roma: um na Ásia Menor (Papias) e outro em África (Clemente)].
4. Na sua carta à igreja de Corinto (escrita entre 95 e 97), o bispo de Roma Clemente menciona os sofrimentos e o martírio de Pedro e Paulo.
[Fernando Saraví: Sim, mas por certo que Clemente não diz que o martírio destes Apóstolos tenha ocorrido em Roma. A carta de Clemente demonstra que, além do Antigo Testamento, conhecia provavelmente os Evangelhos de Mateus e Lucas, e certamente várias das cartas de Paulo, como 1 Coríntios, Romanos, Filipenses, Efésios; também Hebreus. Em contrapartida, é bastante notável e significativo que não haja nenhuma citação textual das epístolas de Pedro].
5. Inácio, bispo de Antioquia, a caminho do seu martírio em Roma escreveu por volta de 117 aos cristãos dessa cidade: "Não vos dou eu ordens como Pedro e Paulo. Eles foram Apóstolos; eu não sou mais que um condenado à morte" (4:3). Isto sugere que Pedro havia trabalhado em Roma.
[Fernando Saraví: Para a época em que escrevia Inácio, princípios do segundo século, é possível que os romanos conhecessem os ensinamentos de Pedro em forma escrita, como já a epístola de Clemente demonstra que conheciam as cartas de Paulo].
6. O bispo Dionísio de Corinto escreveu à Igreja de Roma quando Sóter era bispo ali (165-174). Eusébio comenta e cita esta carta como se segue: "Que os dois [Pedro e Paulo] sofreram martírio na mesma ocasião o afirma Dionísio, bispo de Corinto, em sua correspondência escrita com os romanos, nos seguintes termos: « Nisto também vós ... fundistes as plantações de Pedro e de Paulo, a dos romanos e a dos coríntios, porque depois de ambos plantarem em nossa Corinto, ambos nos instruíram, e depois de ensinarem na Itália no mesmo lugar, os dois sofreram o martírio na mesma ocasião»." (Hist. Eccl. 2, 25:8).
[Fernando Saraví: De novo, é curioso que esta tradição atestada na segunda metade do século II tenha sido conservada por um bispo de Corinto e não pela própria Igreja de Roma].
7. Por volta de finais do século II Ireneu de Lyon afirma que a Igreja de Roma tinha sido "fundada e organizada" "pelos mais gloriosos Apóstolos, Pedro e Paulo" (Adv. Haer. 3:3). Pouco antes tinha escrito: "Mateus também publicou um Evangelho entre os hebreus, no seu próprio dialeto, enquanto Pedro e Paulo estavam pregando em Roma, assentando os alicerces da Igreja." (Adv. Haer. 3:1.1).
[Fernando Saraví: Ireneu obviamente estava enganado, como o reconhecem muitos autores católicos. Paulo certamente não fundou essa igreja, e Pedro dificilmente esteve em Roma antes de 60; ver mais abaixo; além disso, o que diz sobre Mateus, baseado em Papias, é quase seguramente erróneo].
8. Pela mesma época Tertuliano de Cartago, em seus escritos contra os hereges, se refere à Igreja de Roma como aquela "pela qual os Apóstolos derramaram todo o seu ensino com o seu sangue, onde Pedro emulou a paixão do Senhor, onde Paulo foi coroado com a morte de João" [Batista] (De Praescript. 35). O mesmo, contra Marcião apela ao testemunho dos cristãos de Roma, aos quais "Pedro e Paulo legaram o Evangelho selado com o seu sangue" (Adv. Marc 4:5). Em Scorpiace 15 menciona a crucificação de Pedro sob Nero; e em De Baptismo 5 há uma alusão a Pedro batizando no Tibre.
[Fernando Saraví: desta vez é um bispo africano quem refere estas tradições. Roma parece não ter tido conhecimento até então de tão notáveis antecedentes].
9. Eusébio também cita Caio, cristão de Roma em tempos do bispo Zeferino (198-217). Depois de notar a tradição conservada por Tertuliano, no sentido de que Paulo foi decapitado e Pedro crucificado sob Nero, diz que segundo Caio em Roma estão os restos dos Apóstolos mencionados. A citação de Caio diz: "Eu, por outro lado, posso mostrar-te os troféus dos Apóstolos, porque se queres ir ao Vaticano ou ao caminho de Ostia, encontrarás os troféus dos que fundaram esta igreja" (Hist. Eccl. 2:7).
[Fernando Saraví: se supõe que Caio se refere aos sepulcros de Pedro e Paulo, uma vez que indica os lugares tradicionais das suas sepulturas. Contudo, não é claro a que se refere com "troféus"; seria um modo muito peculiar de referir-se a um sepulcro].
10. Havia em Roma, a partir do século II, uma tábua que comemorava a morte dos Apóstolos.
[Fernando Saraví: Uma tábua de origem desconhecida, que data de quase um século depois dos supostos factos].
11. O fragmento de Muratori, uma antiga lista de livros sagrados proveniente de Roma (século II) diz acerca de Atos: "Além disso, os atos de todos os Apóstolos foram escritos num livro. Para o 'excelentíssimo Teófilo' Lucas compilou os acontecimentos individuais que ocorreram na sua presença, como o demonstra claramente ao omitir o martírio de Pedro como também a partida de Paulo da cidade [de Roma], quando viajou até Espanha." (34-39).
[Fernando Saraví: Embora Paulo tivesse intenção de viajar até Espanha (Romanos 15:24,28) não há evidência de que efetivamente o tenha feito. Além disso, não diz o lugar do martírio de Pedro, e aparentemente o dissocia do de Paulo; em resumo, este testemunho de finais do século II serve de bem pouco].
12. Os Atos apócrifos de Pedro, e de Pedro e Paulo também testemunham esta tradição.
[Fernando Saraví: os escritos apócrifos, rejeitados pelos cristãos ortodoxos, são tardios e as suas tradições pouco confiáveis, em particular no que diz respeito às suas referências históricas].
Em todo o caso, o conjunto da evidência, embora de modo algum concludente, indica que o Apóstolo Pedro morreu em Roma no tempo de Nero. Um dado negativo mas importante em relação a isto, é que embora todas as sedes importantes procurassem traçar a sua origem a algum Apóstolo, nenhuma outra Igreja antiga reclamou para si a honra de ser o sítio do martírio de Pedro.
II. A evidência de que Pedro tenha sido o primeiro bispo de Roma
Por outro lado, não existe evidência de que Pedro tenha fundado a Igreja de Roma, nem de que tenha sido o seu primeiro bispo. Já que a ser isto verdade deveria ter ocorrido não mais tarde que 64 a 67, datas prováveis do martírio de Pedro, o documento fundamental para a nossa avaliação tem que ser o Novo Testamento. Eis aqui os dados:
1. A conversão de Paulo ocorreu provavelmente entre 34 e 37. Em Gálatas 1:13-18 Paulo diz que três anos depois da sua conversão viajou até Jerusalém e permaneceu com Pedro durante 15 dias; portanto, em 37 ou 40 Pedro ainda estava em Jerusalém.
2. Em Atos 9 a 11 narra-se a atividade missionária de Pedro em Lida, Jope e Cesareia (Atos 9-11); portanto não estava por então em Roma.
3. Depois da citada digressão, Pedro voltou a Jerusalém (Atos 11:2). Em Atos 12:1-3 Lucas nos diz que por esse tempo Herodes (Agripa) fez matar o Apóstolo Tiago, irmão de João, e encarcerar vários cristãos, entre eles Pedro. A milagrosa libertação de Pedro enfureceu Herodes Agripa (Atos 12:19). Ora bem, este rei morreu pouco depois (12:23). Segundo Flávio Josefo isso ocorreu durante o quarto ano do reinado do imperador Cláudio, ou seja em 45, e Pedro ainda estava em Jerusalém.
4. Em Gálatas 2:1, Paulo diz que 14 anos depois da sua primeira visita à igreja de Jerusalém, retornou e esteve com Tiago (o irmão do Senhor), Pedro e João (2:9). Pedro ainda permanece em Jerusalém. Depois disso, Pedro retribui a visita, viajando até Antioquia (ocasião em que Paulo o repreende por judaizar); portanto se encontra ainda no Próximo Oriente, longe de Roma.
5. Pedro tem um papel destacado no chamado "Concílio de Jerusalém" registado em Atos 15, a propósito do problema dos judaizantes, que teve lugar provavelmente por volta de 48 ou 49; portanto nessas datas também não se encontrava em Roma. Depois disso, possivelmente viajou pelas províncias orientais do império com a sua esposa (1 Coríntios 9:5).
6. A carta de Paulo aos Romanos é datada entre 54 e 57. Escreve-lhes para "confirmá-los" e "anunciar-lhes o Evangelho" (1:11-15), coisa estranha se se supõe que Pedro já estava ali ensinando, sobretudo quando se recorda que Paulo não queria gloriar-se do feito por outros (2 Coríntios 10:15-16), e "edificar sobre o fundamento de outro" (Romanos 15:20). Além disso, no capítulo 16 Paulo saúda pelo nome 26 pessoas que conhecia na Igreja de Roma, mas não menciona em lado nenhum Pedro. Portanto, é razoável pensar que por volta de 57 Pedro também não estava em Roma.
7. Paulo foi feito prisioneiro e permaneceu em Roma entre 58 e 60 (ou 60 a 62), e permaneceu ali não menos de 2 anos (Atos 28:30). A partir dali escreveu Efésios, Colossenses, Filemom e Filipenses. Em nenhuma destas epístolas menciona a presença de Pedro em Roma em finais dos anos 50 ou princípios dos anos 60.
8. Depois Paulo foi libertado e visitou as igrejas do Oriente. Foi feito prisioneiro e martirizado por volta de 67. Pouco antes escreveu 2 Timóteo, onde diz expressamente, "Só Lucas está comigo", e envia saudações de vários irmãos ("Pudente, Lino, Cláudia e todos os irmãos"), mas novamente Pedro está ausente.
Diante do aqui exposto, é razoável pensar que se as tradições acerca da morte de Pedro em Roma estiverem corretas, a sua estadia e atividade deve ter sido relativamente breve, possivelmente coincidindo com a libertação transitória de Paulo (ou seja, entre 60 e 66 no máximo, antes que fosse escrito 2 Timóteo). As epístolas de Pedro datariam de aproximadamente 64. Portanto, se bem que pareça muito provável que Pedro tenha pregado e morrido em Roma, não há evidência que tenha fundado a Igreja romana, nem que tenha sido o seu primeiro bispo.
Portanto, do ponto de vista histórico a pretensão do bispo romano de ser o "sucessor de Pedro", com o primado, a infalibilidade e qualquer outra prerrogativa singular, carece por completo de fundamento sólido. Trata-se de um gigantesco edifício construído sobre areia.
Bênçãos em Cristo,
Fernando D. Saraví